quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Morte que não é morte

“Não devemos chorar a morte dos entes queridos. Não é certo lamentar-se como particular desgraça o que se sabe atingir a todos. Seria desejar subtrair-se ao destino geral, não aceitar a lei comum, não reconhecer a igualdade de natureza, seguir os sentimentos carnais e ignorar a finalidade do corpo. Haverá algo mais tolo do que desconhecer o que se é, querer parecer o que não é ?.. algo de menos inteligente do que, sabendo o que deve acontecer, não lograr suportá-lo quando acontece ? A própria natureza nos interpela e nos retira da dor com um modo de consolar que lhe é todo próprio. De fato, não há sofrimento tão profundo, tormento tão acerbo que não ache algum lenitivo: e é a natureza que oferece aos homens, precisamente porque são homens, desligando seu espírito da dor, mesmo nas situações mais tristes e lutuosas. Houve povos dizem, que se afligiam com o nascimento de um homem, ao passo que celebravam festivamente sua partida. Isto não é totalmente destituído de significado, pois acreditariam dever lamentar os que se põem ao leme do barco em mar tempestuoso, como é a vida: pensariam, ao contrário, não ser errado alegrar-se com os que escapavam às borrascas da vida. Mesmo nós, cristãos, esquecemos o dia do nascimento de nossos santos e festejamos o de seu retorno à pátria.
De acordo com a ordem natural, portanto, não é justo dar excessivo lugar ao pesar, se não se deseja reclamar uma especial exceção ao curso da natureza, recusando-se a sorte comum. A morte, com, é comum a todos, sem distinção de pobres e ricos. E, embora tenha vindo ao mundo por culpa de um só homem, passou a todos, a ponto de devermos considerar autor da morte o que foi principio do gênero humano. Mas igualmente por obra de um só veio para nós a ressurreição! Não haveria então que desejar subtrair-nos ao flagelo trazido pelo primeiro para que assim possamos obter a graça do segundo. Cristo, diz a Escritura, veio para recuperar o que estava perdido, a fim de reinar deste modo não só sobre os vivos, mas também  sobre os mortos. Em Adão nós caímos, fomos expulsos do paraíso e morremos: como poderá o senhor reconduzir-nos a si, se não nos encontra em Adão? Neste decaímos sob o poder do pecado e da morte, em Cristo nos tornamos justificados. A morte é um débito comum: todos devemos suportar-lhe a paga...
Considero um ultraje que se faz à piedosa memória dos defuntos o considerá-los perdidos ,e o preferir esquecê-los antes com nossos sufrágios: o pensar neles com temor e não com amor e benevolência: o temer recordá-los , ao invés de procurar-lhes a paz: o nutrir enfim mais receio do que esperança, quando se pensa em seus méritos, como se lhes competisse mais o castigo do que a imortalidade.
Vem, contudo a objeção: Mas perdemos os nossos caros! Sim, porém não é esta a sorte que comungamos com a terra e com os elementos: a de não reter para sempre o que nos foi emprestado por algum tempo? A terra geme sob o arado, é frustrada pela chuva, batida pela tempestade, ressecada pela geada, queimada pelo sol: tudo isto, para que frutifique e dê a colheita de cada ano. Apenas se reveste de múltiplos encantos e logo deles vem desfeita. De quanta coisa se vê privada! Mas não irá lamentar a perda de seus frutos, pois os produziu para perdê-los. Nem se recusa a produzir outros no futuro, embora lhes vão ser de novo tirados. O céu também,  ele não está sempre fulgurando com a grinalda das estrelas, nem a aurora sempre o ilumina ou o douram os raios de sol, mas bem regularmente se torna velado pela fria neblina da noite. Que há de mais grandioso que a luz, de mais esplendoroso que o sol? Pois ambos desaparecem cada dia e nós suportamos isto sem reclamar, pois sabemos que voltarão. Aqui se mostra a paciência que deves ter quando também se vão os que te são caros. Não te entristeces quando os astros desaparecem. Por que há de afligir-te a morte do homem?.
( S.Ambrósio, sobre a morte de seu irmão Sátiro )
Fonte: Livro de Escatologia 
Escola "Mater Ecclesiae"/RJ


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